Pandemia: a tragédia desigual e combinada
Por Mariana Conti Para mim, a quarentena é sinônimo de noites de insônia. Minha dificuldade de dormir e a tendência trocar o dia pela noite não começa com o COVID-19. Quem me conhece sabe que passo noites em claro, às vezes lendo e trabalhando, às vezes só revirando a cama e os pensamentos. Mas a […]
28 abr 2020, 17:22 Tempo de leitura: 6 minutos, 34 segundosPor Mariana Conti
Para mim, a quarentena é sinônimo de noites de insônia. Minha dificuldade de dormir e a tendência trocar o dia pela noite não começa com o COVID-19. Quem me conhece sabe que passo noites em claro, às vezes lendo e trabalhando, às vezes só revirando a cama e os pensamentos. Mas a pandemia me tirou o fuso social e a tranquilidade. São 3 horas da manhã. Ontem a tarde o prefeito de Campinas, Jonas Donizette, anunciou a adesão à política bolsonarista de negação do isolamento social e a aposta no “salve-se quem puder”. Deu outro nome, outra roupa, mas é exatamente a mesma coisa. Assim como Dória já tinha feito. Em Campinas, o genocídio ganhou apelido de “Plano de Monitoramento da pandemia de COVID e Flexibilização do Distanciamento Social”. O nome pomposo engana, faz crer que existe muita técnica por trás. Aliás, é impressionante a capacidade de transformação do discurso. Pois então, noite adentro estudando esse plano.
A mudança de política e de discurso não responde a nenhuma mudança da realidade. Do ponto de vista da pandemia o que mudou nas últimas semanas foi que o número de confirmados está cada vez maior. Também a cada dia aumentam as mortes. Isso sem considerar a subnotificação. E quanto maior o número mais ele cresce. Progressão geométrica, né? O drama do colapso no sistemas de saúde e funerário fica cada dia mais perto. Antes era a Lombardia italiana, passou pela equatoriana Guaiaquil e agora é a nossa Manaus. Tão perto e tão longe. Como é comum nesse Brasil, a comoção também é estratificada. As mortes amazonenses causam menos temor e lágrimas do que as européias. Talvez porque a ideologia colonial aproximou as terras paulistas da Europa e guardou distância com os povos do norte.
Mas muita coisa mudou. Bolsonaro trocou o Ministro da Saúde, nomeou um coach de planos de saúde que está cumprindo a que veio: permanecer absolutamente apagado. Essa era a sua função e ele está cumprindo-a muito bem. No pacote também veio o sepultamento do isolamento social. A contenda entre o presidente miliciano e o juiz oportunista faz a gente esquecer da pandemia. Por instantes, apenas. As notícias do recuos em relação à quarentena logo vem embrulhar o estômago. Às vezes nas entrelinhas, às vezes abertamente, sustenta-se a tese da “imunização de rebanho”. Ou seja as pessoas vão ser contaminadas, algumas vão adoecer gravemente, algumas vão morrer, mas outras tanto vão estar imunizadas e continuarão a sua vida normal. Essa foi a tese que, em um primeiro momento, inspirou o primeiro ministro britânico Boris Johnson. Logo descartada, quando começou-se a desenhar o tamanho da tragédia e o número de mortes parecia insustentável. Nos trópicos neocoloniais essa tragédia não soa assim tão insustentável. Essa tese-tragédia é o que embasa o plano de Jonas, Dória e Bolsonaro. Ignora-se que não existem comprovações científicas de que uma pessoa contaminada pelo Covid-19 esteja imunizada. Ignora-se que todos os efeitos colaterais de uma contaminação em massa. Ignora-se que as vidas não cabem nas estatísticas. Em suma, está se preparando o abate do rebanho. A questão é quem vive e quem morre.
O Covid vai continuar contaminando pessoas de diferentes grupos sociais, etnias, raça, renda, torcidas de times de futebol etc. Mas uma coisa já se sabe: quem morre é quem está lá embaixo. Existem vítimas fatais entre as elites e as classes médias, mas quando se compara a relação entre número de infectados e o número de mortos por regiões da cidade de São Paulo, observa-se que o fator de risco predominante é a pobreza. E quanto mais pobre maior o risco. No Brasil patriarcal, também a raça e o gênero definem o risco. Fatores de risco entrecruzados e superpostos. É a estratificação do risco. São exatamente os pobres que estão sob a maior pressão desta chantagem fúnebre: a doença ou a fome. Como se tivesse escolha possível. São essas pessoas que vão trabalhar, que vão pegar os ônibus lotados; são elas a engrenagem da “economia”. É verdade, a geladeira está vazia. E então, o que fazer se não trabalhar?
O isolamento social e a paralisação das atividades de trabalho só são possíveis se as pessoas tiverem condições materiais de permanecerem em casa, como fez a China, a Itália. Como estão fazendo os Estados Unidos. Mas como? Para isso ser possível seria necessário que o Estado fosse algo que hoje ele não é, o gestor da coletividade. E que nessa coletividade imperasse a máxima: cada um de acordo com a sua possibilidade, a cada um de acordo com a sua necessidade. Bom, mas é preciso financiar isto. E por que diante de uma das maiores crises da humanidade não buscar dinheiro onde ele abunda? Estou aqui com o meu exemplar da revista Forbes, especial bilionários brasileiros 2020. Sempre gosto de acompanhar essas movimentações do tope da sociedade, o método “folow the money” (“siga o dinheiro”) diz muita coisa desse país. O banqueiro Joseph Safra é o top-list e tem 19 bilhões de dólares . Jorge Paulo Lemman, sócio da cervejaria Ambev é o vice e tem 10,4 bilhões de dólares. A lista segue; a maioria são banqueiros ou vivem de renda. Muitos moram fora do Brasil. Fico pensando quantas pessoas poderiam ter uma renda básica e manter o isolamento social com 10%, que seja, do patrimônio desses bilionários.
Em Campinas, enquanto as crianças estão passando fome sem merenda, enquanto os trabalhadores informais, da área da cultura, feirantes, trabalhadoras domésticas, comerciários etc. estão completamente sem renda, apenas os cem maiores devedores de Campinas devem 4 bilhões de reais para a prefeitura. Isso mesmo, cem pessoas ou empresas devem o equivalente a 75% do orçamento anual da cidade. E essa dívida explodiu na prefeitura Jonas. Seria um orçamento suficiente para pagar merenda escolar para as crianças que não podem ir para escola, dar um auxílio extra de renda para as famílias dessas crianças e fazer uma renda básica municipal para todos que ficaram desempregados ou com a renda achatada na cidade. Com sobra. A prefeitura alega dificuldade de cobrar essa dívida. “A execução judicial dessas dívidas é difícil”, já ouvi de membros do governo. Dificuldade? Executar judicialmente e fazer reintegrações de posse de terrenos e prédios ocupados por pobres não é difícil. Como aconteceu com a ocupação Mandela em 2017. Mais de 600 pessoas violentamente desocupadas, dormindo ao relento, um enorme aparato para fazer a reintegração – drone, cavalaria, efetivo enorme da Polícia Militar. Fazer esse tipo de execução não é difícil. É caro, mas não difícil. Deixar as pessoas morrerem contaminadas, o sistema de saúde entrar em colapso e os profissionais da saúde adoecidos, quando não mortos, isso não é difícil. O grau da dificuldade, no caso, é uma questão de poder: o poder de tomar esta ou aquela decisão.
A saída da chantagem fúnebre, a possibilidade real de isolamento e a proteção de vidas dependem de combater outra moléstia. Uma moléstia que nos persegue. A moléstia da desigualdade, da concentração de riqueza e do poder. Caso contrário, caminhamos para o abate, alguns com mais chance que outros, mas todos no mesmo rumo.
Pois bem, me chamem de comunista.